Martina Keller e Markus GrillO negócio de partes do corpo da companhia alemã Tutogen é tão secreto quanto lucrativo. Ela extrai ossos de corpos na Ucrânia para fabricar produtos médicos para um mercado global que movimenta bilhões e está centrado nos Estados Unidos.
O engenheiro aposentado Anatoly Korzhak morreu em Kiev em 5 de agosto de 2004. Seu corpo foi recolhido às 2h e levado para o instituto de medicina legal da capital ucraniana. Na mesma noite, a filha de Korzhak, Lena Krat, recebeu um telefonema no qual pediram para que ela fosse para o instituto logo de manhã, onde receberia mais informações.
O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total
de US$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource"
Foi a primeira vez que Krat recebeu a notícia da morte de um parente próximo. "Eu fiquei tão triste que não conseguia pensar com clareza", lembra-se. Quando ela chegou ao instituto de manhã, um homem disse alguma coisa para ela sobre transplantes de pele. Tratava-se de um funcionário de uma companhia ucraniana que trabalha lado a lado com os especialistas em medicina legal. Ela disse ao homem: "Deixe-me em paz. Eu não sei do que você está falando e não quero ouvi-lo."
Mas o funcionário foi persistente e eventualmente deu a ela um formulário para assinar. Ele disse que se ela consentisse com a remoção da pele, estaria ajudando vítimas pediátricas de queimaduras, que precisavam de transplante. Krat assinou o formulário. "Foi como se eu tivesse sido hipnotizada", disse ela.
Mas agora Krat, mãe de duas filhas pequenas, ficou sabendo através da "Spiegel" que a companhia ucraniana em questão enviava as partes de corpos para a companhia alemã Tutogen Medical GmbH, que por sua vez fornece aparentemente um grande número de partes de corpos para o mercado norte-americano de tecidos.
Além de faixas de pele, tendões, ossos e cartilagem são removidos dos corpos. "Isso me chocou", disse Krat. "Se eu soubesse que tudo isso seria retirado, eu jamais teria dado meu consentimento."
Uma indústria lucrativa
O incidente na capital ucraniana faz parte da rotina diária secreta de um ramo pouco conhecido, mas altamente lucrativo do setor médico, no qual companhias usam corpos para produzir suprimentos médicos. Ao fazer isso, eles reutilizam quase tudo que o corpo humano tem a oferecer: ossos, cartilagem, tendões, fáscia muscular, pele, córneas, saco pericárdico e válvulas do coração. No jargão da profissão, tudo isso é chamado de "tecido".
Ossos e tendões, as partes que mais interessam à Tutogen, são submetidos a um processamento complexo. A companhia retira a gordura e limpa os ossos, corta, serra ou os tritura nos tamanhos desejados, depois esteriliza, embala e vende o produto final para mais de 40 países em todo o mundo. Com uma prescrição médica é até mesmo possível pedir os produtos da Tutogen através de farmácias online.
O mercado para os tecidos ainda é pequeno na Alemanha. No que diz respeito aos ossos, por exemplo, os especialistas estimam que cerca de apenas 30 mil transplantes por ano são feitos em hospitais de todo o país, principalmente para reconstrução óssea durante cirurgias de quadril e coluna vertebral.
Nos Estados Unidos, a história é completamente diferente. De acordo com a Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, mais de um milhão de partes de ossos são usadas em transplantes todos os anos. Em nenhum outro país é possível ganhar tanto dinheiro com partes de corpos. Se um corpo for separado em partes avulsas, depois processado e vendido, o procedimento total poderia chegar a US$ 250 mil (cerca de R$ 470 mil). Por apenas um corpo! O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, coautora deste artigo e autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource" [algo como "Canibalizado: O Corpo Humano Como Matéria-Prima"], publicado na Alemanha.
Questões éticas e legais
Isso levanta questões sobre a legalidade do processo de obter a matéria-prima. E será que os produtos ósseos feitos a partir de corpos são medicamente necessários? De acordo com Klaus-Peter Günther, presidente da Sociedade Alemã de Ortopedia e Cirurgia Ortopédica, eles normalmente "não são a primeira escolha" nas cirurgias. "Para nós, a regra de ouro ainda é o tecido retirado diretamente do paciente em questão."
As demais alternativas só são uma opção quando o material do corpo do paciente é insuficiente, disse Günther. Essas alternativas incluem ossos de animais e substitutos artificiais feitos de material cerâmico, por exemplo - ou ossos de doadores humanos.
Muitos hospitais coletam e reutilizam fragmentos de ossos removidos de pacientes que receberam quadris artificiais. "Por esse motivo", diz Günther, "não tivemos de recorrer a doadores mortos até agora."
Nos Estados Unidos, os médicos têm menos escrúpulos em relação a usar partes de corpos de mortos do que seus colegas alemães - em áreas como cirurgia de coluna, lesões esportivas e cirurgia cosmética. Por exemplo, os médicos usam partículas pulverizadas de pele para aumentar os lábios e atenuar rugas.
Será que os corpos devem ser cortados para tornar os procedimentos cosméticos possíveis? Ingrid Schneider é decididamente contra essa prática. Durante os últimos 15 anos, a cientista política de Hamburgo, ex-integrante da Comissão Investigativa sobre Lei e Ética na Medicina Moderna do parlamento alemão, esteve envolvida no assunto da reciclagem de material corporal. Schneider argumenta que o corpo não é uma fonte de materiais que podem ser vendidos à vontade. Por causa dessas preocupações, não surpreende que muitas pessoas sejam profundamente contra permitir que o corpo de um familiar seja reusado, mesmo para fins médicos.
Mesmo que seja pouco realista esperar que toda a comercialização de partes de corpos seja proibida na medicina moderna, diz Schneider, é importante estabelecer limites. Por esse motivo, ela insiste que os tecidos humanos devem ser usados com restrições - ou seja, apenas quando seu uso é medicamente necessário e evidentemente superior a outras formas de tratamento.
A convicção de que o corpo é muito mais do que um objeto também influenciou as políticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, instituição da UE que representa os líderes e ministros do bloco de 27 países. Todas essas instituições condenam a prática do comércio de partes do corpo humano para obter lucro.
Na Alemanha, a lei de transplantes de órgão regulamenta a remoção de tecidos. Apenas aqueles que consentiram com a coleta de órgãos e tecidos são considerados doadores. Se uma pessoa morre e não é uma doadora, seus parentes próximos podem consentir com a doação. O parágrafo 17 da lei de transplantes define explicitamente: "É proibido comercializar órgãos ou tecidos para uso em tratamentos médicos e outros fins." Médicos que removem tecidos só podem receber uma compensação correspondente ao seu trabalho. A lei determina sentenças de prisão de até cinco anos por violação à proibição de comércio.
Mercado de tecidos em alta
A Tutogen paga a seus parceiros ucranianos um preço fixo por cada parte do corpo humano. Em janeiro de 2002, a companhia pagou € 42,90 (R$ 115) por um fêmur completo, € 42,90 (R$ 115) por um úmero e € 13,30 a € 16,40 (R$ 35,78 a R$ 44,12) por um saco pericárdico, dependendo do tamanho. Também foram estabelecidos graduações de preços com os ucranianos. Por exemplo, a remoção de tendões patelares com segmentos de ossos, conhecida como "ligação osso-tendão-osso", ou OTO. Quando os funcionários legistas forneciam menos de 40 OTOs, a Tutogen pagava € 14,30 (cerca de R$ 38,50) por peça. Para quantidades maiores de OTOs, o preço subia para até € 23 (cerca de R$ 62) por peça para 40 ou mais OTOs, e para € 26,10 (cerca de R$ 70) por peça para 60 ou mais. Para um funcionário que ganha cerca de € 200 euros na Ucrânia, esses preços devem ter servido como um incentivo para remover o máximo de material corporal possível.
Leia outras reportagens de jornais internacionais
Departamento de Justiça dos EUA e CIA se estranham por violência contra presos
A surpreendente recuperação chinesa
Abastecimento e sustentabilidade dependem da coexistência de fontes energéticas
Como o premiê italiano Silvio Berlusconi continua lá?
Milhares de páginas de memorandos internos, faxes, listas de estoque e documentos do ano 2000 a 2004 aos quais a "Spiegel" obteve acesso sugerem que a Tutogen não apenas processou as partes de corpos vindas da Ucrânia, mas também as forneceu ao mercado de tecidos dos EUA.
A empresa RTI Biologics da Flórida, uma das líderes do setor no mercado norte-americano, teve um rendimento de US$ 147 milhões (R$ 276 milhões) com suas vendas em 2008. A companhia descreve a si mesma como a "líder em fornecimento de implantes biológicos estéreis para cirurgias em todo o mundo."
Para esse fim, a RTI comprou no ano passado a Tutogen Medical Inc., companhia americana irmã da alemã Tutogen Medical GmbH. A aquisição foi uma boa notícia para os acionistas da RTI, por causa da grande rede internacional de doadores da Tutogen, disse o diretor-executivo Brian Hutchison. Dizendo de outra forma, a Tutogen é uma companhia que sabe como ter acesso ao maior número possível de partes de corpos.
As partes de corpos vindas da Ucrânia são enviadas via aérea para Frankfurt ou Nuremberg. De lá, elas são levadas para a sede da Tutogen em Neunkirchen am Brand, uma cidade de 8 mil pessoas no norte da Bavária.
As instalações da Tutogen em Neunkirchen, a poucos quilômetros ao norte de Nuremberg, compreendem vários prédios baixos, parecidos com galpões, onde trabalham cerca de 140 funcionários. No geral, é um lugar discreto para os visitantes que vêm regularmente da Ucrânia e dos Estados Unidos.
O presidente da companhia, Karl Koschatzky, recusou-se a responder às perguntas para uma entrevista, e a companhia não quis responder a uma lista de perguntas enviadas para seus escritórios.
O representante
A Tutogen usa um representante para organizar suas entregas da Ucrânia. O doutor Igor Aleshenko, formado em medicina legal, gerencia as relações da companhia com os vários institutos de medicina legal locais. Ele trabalha para a Tutogen na Ucrânia há cerca de dez anos.
Nesse tempo, Aleshenko se tornou um homem abastado, e agora divide seu tempo entre suas duas residências, uma em Kiev e outra em Moscou. Em 2002, a Tutogen descreveu Aleshenko como seu "funcionário de alto custo". Ele também não estava disponível para entrevista em Kiev, nem respondeu às perguntas enviadas por escrito pela reportagem.
Na Ucrânia, Aleshenko é muito mais do que o contato local da Tutogen. Ele é o diretor da Bioimplant, uma companhia que gerencia a remoção de tecidos. Por causa de seus laços estreitos com o Ministério da Saúde ucraniano, a Bioimplant é praticamente imune às inspeções excessivamente rigorosas de carregamentos de ossos na fronteira.
Os ucranianos não sabem muito sobre as verdadeiras atividades da Bioimplant. De acordo com o site da companhia, sua "atividade principal" é a "produção de bioimplantes" para uso em pacientes ucranianos. Mas o que a Bioimplant faz de fato?
Verão de 2009 em Kiev. Qualquer um que quisesse fazer uma visita à Bioimplant estaria inclinado a ir para o endereço oficial da companhia na rua Patrice Lumumba 4/6, um prédio de escritórios com vários inquilinos - onde a Bioimplant não tem nem uma caixa de correio.
Um guarda e um porteiro saúdam os visitantes e os enviam para o quarto andar, onde os escritórios da Bioimplant estão supostamente localizados. A sala 305 é um longo corredor de portas fechadas. Não há nem mesmo uma placa para identificar que a sala pertence à Bioimplant. Um jovem com terno listrado abre a porta. Ele diz que trabalha há pouco tempo para a Bioimplant e que a maior parte de seu trabalho consiste em fazer fotocópias.
De acordo com o jovem, a companhia aluga as três salas no prédio de escritórios, mas o doutor Aleshenko não está lá hoje. Brochuras da Tutogen e pacotes de ossos esterilizados são estocados na sala ao lado. Em vez do local de produção que se esperava, os escritórios são apenas um local de distribuição.
A Tutogen desenvolveu sua relação comercial com Aleshenko há cerca de dez anos. Durante uma viagem à sede da Tutogen no interior da Bavária em novembro de 2001, Aleshenko encontrou-se com Koschatzky no Hotel Bayerischer Hof em Erlangen, próximo a Nuremberg. A ata da reunião contém uma lista de "novas patologias" trabalhando para a Tutogen nas cidades do leste da Ucrânia de Dnipropetrovsk, Poltava and Zhytomyr.
Aleshenko aparentemente trouxe consigo uma lista de pedidos para a reunião, e seus parceiros alemães estavam ansiosos em satisfazê-lo. De acordo com a ata, a "TTG (Tutogen) concordou em fornecer 5 mil marcos alemães para custos de investimento em Dnipropetrovsk (Ucrânia). O doutor Aleshenko nos enviará as instruções de pagamento necessárias."
O engenheiro aposentado Anatoly Korzhak morreu em Kiev em 5 de agosto de 2004. Seu corpo foi recolhido às 2h e levado para o instituto de medicina legal da capital ucraniana. Na mesma noite, a filha de Korzhak, Lena Krat, recebeu um telefonema no qual pediram para que ela fosse para o instituto logo de manhã, onde receberia mais informações.
O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total
de US$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource"
Foi a primeira vez que Krat recebeu a notícia da morte de um parente próximo. "Eu fiquei tão triste que não conseguia pensar com clareza", lembra-se. Quando ela chegou ao instituto de manhã, um homem disse alguma coisa para ela sobre transplantes de pele. Tratava-se de um funcionário de uma companhia ucraniana que trabalha lado a lado com os especialistas em medicina legal. Ela disse ao homem: "Deixe-me em paz. Eu não sei do que você está falando e não quero ouvi-lo."
Mas o funcionário foi persistente e eventualmente deu a ela um formulário para assinar. Ele disse que se ela consentisse com a remoção da pele, estaria ajudando vítimas pediátricas de queimaduras, que precisavam de transplante. Krat assinou o formulário. "Foi como se eu tivesse sido hipnotizada", disse ela.
Mas agora Krat, mãe de duas filhas pequenas, ficou sabendo através da "Spiegel" que a companhia ucraniana em questão enviava as partes de corpos para a companhia alemã Tutogen Medical GmbH, que por sua vez fornece aparentemente um grande número de partes de corpos para o mercado norte-americano de tecidos.
Além de faixas de pele, tendões, ossos e cartilagem são removidos dos corpos. "Isso me chocou", disse Krat. "Se eu soubesse que tudo isso seria retirado, eu jamais teria dado meu consentimento."
Uma indústria lucrativa
O incidente na capital ucraniana faz parte da rotina diária secreta de um ramo pouco conhecido, mas altamente lucrativo do setor médico, no qual companhias usam corpos para produzir suprimentos médicos. Ao fazer isso, eles reutilizam quase tudo que o corpo humano tem a oferecer: ossos, cartilagem, tendões, fáscia muscular, pele, córneas, saco pericárdico e válvulas do coração. No jargão da profissão, tudo isso é chamado de "tecido".
Ossos e tendões, as partes que mais interessam à Tutogen, são submetidos a um processamento complexo. A companhia retira a gordura e limpa os ossos, corta, serra ou os tritura nos tamanhos desejados, depois esteriliza, embala e vende o produto final para mais de 40 países em todo o mundo. Com uma prescrição médica é até mesmo possível pedir os produtos da Tutogen através de farmácias online.
O mercado para os tecidos ainda é pequeno na Alemanha. No que diz respeito aos ossos, por exemplo, os especialistas estimam que cerca de apenas 30 mil transplantes por ano são feitos em hospitais de todo o país, principalmente para reconstrução óssea durante cirurgias de quadril e coluna vertebral.
Nos Estados Unidos, a história é completamente diferente. De acordo com a Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, mais de um milhão de partes de ossos são usadas em transplantes todos os anos. Em nenhum outro país é possível ganhar tanto dinheiro com partes de corpos. Se um corpo for separado em partes avulsas, depois processado e vendido, o procedimento total poderia chegar a US$ 250 mil (cerca de R$ 470 mil). Por apenas um corpo! O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, coautora deste artigo e autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource" [algo como "Canibalizado: O Corpo Humano Como Matéria-Prima"], publicado na Alemanha.
Questões éticas e legais
Isso levanta questões sobre a legalidade do processo de obter a matéria-prima. E será que os produtos ósseos feitos a partir de corpos são medicamente necessários? De acordo com Klaus-Peter Günther, presidente da Sociedade Alemã de Ortopedia e Cirurgia Ortopédica, eles normalmente "não são a primeira escolha" nas cirurgias. "Para nós, a regra de ouro ainda é o tecido retirado diretamente do paciente em questão."
As demais alternativas só são uma opção quando o material do corpo do paciente é insuficiente, disse Günther. Essas alternativas incluem ossos de animais e substitutos artificiais feitos de material cerâmico, por exemplo - ou ossos de doadores humanos.
Muitos hospitais coletam e reutilizam fragmentos de ossos removidos de pacientes que receberam quadris artificiais. "Por esse motivo", diz Günther, "não tivemos de recorrer a doadores mortos até agora."
Nos Estados Unidos, os médicos têm menos escrúpulos em relação a usar partes de corpos de mortos do que seus colegas alemães - em áreas como cirurgia de coluna, lesões esportivas e cirurgia cosmética. Por exemplo, os médicos usam partículas pulverizadas de pele para aumentar os lábios e atenuar rugas.
Será que os corpos devem ser cortados para tornar os procedimentos cosméticos possíveis? Ingrid Schneider é decididamente contra essa prática. Durante os últimos 15 anos, a cientista política de Hamburgo, ex-integrante da Comissão Investigativa sobre Lei e Ética na Medicina Moderna do parlamento alemão, esteve envolvida no assunto da reciclagem de material corporal. Schneider argumenta que o corpo não é uma fonte de materiais que podem ser vendidos à vontade. Por causa dessas preocupações, não surpreende que muitas pessoas sejam profundamente contra permitir que o corpo de um familiar seja reusado, mesmo para fins médicos.
Mesmo que seja pouco realista esperar que toda a comercialização de partes de corpos seja proibida na medicina moderna, diz Schneider, é importante estabelecer limites. Por esse motivo, ela insiste que os tecidos humanos devem ser usados com restrições - ou seja, apenas quando seu uso é medicamente necessário e evidentemente superior a outras formas de tratamento.
A convicção de que o corpo é muito mais do que um objeto também influenciou as políticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, instituição da UE que representa os líderes e ministros do bloco de 27 países. Todas essas instituições condenam a prática do comércio de partes do corpo humano para obter lucro.
Na Alemanha, a lei de transplantes de órgão regulamenta a remoção de tecidos. Apenas aqueles que consentiram com a coleta de órgãos e tecidos são considerados doadores. Se uma pessoa morre e não é uma doadora, seus parentes próximos podem consentir com a doação. O parágrafo 17 da lei de transplantes define explicitamente: "É proibido comercializar órgãos ou tecidos para uso em tratamentos médicos e outros fins." Médicos que removem tecidos só podem receber uma compensação correspondente ao seu trabalho. A lei determina sentenças de prisão de até cinco anos por violação à proibição de comércio.
Mercado de tecidos em alta
A Tutogen paga a seus parceiros ucranianos um preço fixo por cada parte do corpo humano. Em janeiro de 2002, a companhia pagou € 42,90 (R$ 115) por um fêmur completo, € 42,90 (R$ 115) por um úmero e € 13,30 a € 16,40 (R$ 35,78 a R$ 44,12) por um saco pericárdico, dependendo do tamanho. Também foram estabelecidos graduações de preços com os ucranianos. Por exemplo, a remoção de tendões patelares com segmentos de ossos, conhecida como "ligação osso-tendão-osso", ou OTO. Quando os funcionários legistas forneciam menos de 40 OTOs, a Tutogen pagava € 14,30 (cerca de R$ 38,50) por peça. Para quantidades maiores de OTOs, o preço subia para até € 23 (cerca de R$ 62) por peça para 40 ou mais OTOs, e para € 26,10 (cerca de R$ 70) por peça para 60 ou mais. Para um funcionário que ganha cerca de € 200 euros na Ucrânia, esses preços devem ter servido como um incentivo para remover o máximo de material corporal possível.
Leia outras reportagens de jornais internacionais
Departamento de Justiça dos EUA e CIA se estranham por violência contra presos
A surpreendente recuperação chinesa
Abastecimento e sustentabilidade dependem da coexistência de fontes energéticas
Como o premiê italiano Silvio Berlusconi continua lá?
Milhares de páginas de memorandos internos, faxes, listas de estoque e documentos do ano 2000 a 2004 aos quais a "Spiegel" obteve acesso sugerem que a Tutogen não apenas processou as partes de corpos vindas da Ucrânia, mas também as forneceu ao mercado de tecidos dos EUA.
A empresa RTI Biologics da Flórida, uma das líderes do setor no mercado norte-americano, teve um rendimento de US$ 147 milhões (R$ 276 milhões) com suas vendas em 2008. A companhia descreve a si mesma como a "líder em fornecimento de implantes biológicos estéreis para cirurgias em todo o mundo."
Para esse fim, a RTI comprou no ano passado a Tutogen Medical Inc., companhia americana irmã da alemã Tutogen Medical GmbH. A aquisição foi uma boa notícia para os acionistas da RTI, por causa da grande rede internacional de doadores da Tutogen, disse o diretor-executivo Brian Hutchison. Dizendo de outra forma, a Tutogen é uma companhia que sabe como ter acesso ao maior número possível de partes de corpos.
As partes de corpos vindas da Ucrânia são enviadas via aérea para Frankfurt ou Nuremberg. De lá, elas são levadas para a sede da Tutogen em Neunkirchen am Brand, uma cidade de 8 mil pessoas no norte da Bavária.
As instalações da Tutogen em Neunkirchen, a poucos quilômetros ao norte de Nuremberg, compreendem vários prédios baixos, parecidos com galpões, onde trabalham cerca de 140 funcionários. No geral, é um lugar discreto para os visitantes que vêm regularmente da Ucrânia e dos Estados Unidos.
O presidente da companhia, Karl Koschatzky, recusou-se a responder às perguntas para uma entrevista, e a companhia não quis responder a uma lista de perguntas enviadas para seus escritórios.
O representante
A Tutogen usa um representante para organizar suas entregas da Ucrânia. O doutor Igor Aleshenko, formado em medicina legal, gerencia as relações da companhia com os vários institutos de medicina legal locais. Ele trabalha para a Tutogen na Ucrânia há cerca de dez anos.
Nesse tempo, Aleshenko se tornou um homem abastado, e agora divide seu tempo entre suas duas residências, uma em Kiev e outra em Moscou. Em 2002, a Tutogen descreveu Aleshenko como seu "funcionário de alto custo". Ele também não estava disponível para entrevista em Kiev, nem respondeu às perguntas enviadas por escrito pela reportagem.
Na Ucrânia, Aleshenko é muito mais do que o contato local da Tutogen. Ele é o diretor da Bioimplant, uma companhia que gerencia a remoção de tecidos. Por causa de seus laços estreitos com o Ministério da Saúde ucraniano, a Bioimplant é praticamente imune às inspeções excessivamente rigorosas de carregamentos de ossos na fronteira.
Os ucranianos não sabem muito sobre as verdadeiras atividades da Bioimplant. De acordo com o site da companhia, sua "atividade principal" é a "produção de bioimplantes" para uso em pacientes ucranianos. Mas o que a Bioimplant faz de fato?
Verão de 2009 em Kiev. Qualquer um que quisesse fazer uma visita à Bioimplant estaria inclinado a ir para o endereço oficial da companhia na rua Patrice Lumumba 4/6, um prédio de escritórios com vários inquilinos - onde a Bioimplant não tem nem uma caixa de correio.
Um guarda e um porteiro saúdam os visitantes e os enviam para o quarto andar, onde os escritórios da Bioimplant estão supostamente localizados. A sala 305 é um longo corredor de portas fechadas. Não há nem mesmo uma placa para identificar que a sala pertence à Bioimplant. Um jovem com terno listrado abre a porta. Ele diz que trabalha há pouco tempo para a Bioimplant e que a maior parte de seu trabalho consiste em fazer fotocópias.
De acordo com o jovem, a companhia aluga as três salas no prédio de escritórios, mas o doutor Aleshenko não está lá hoje. Brochuras da Tutogen e pacotes de ossos esterilizados são estocados na sala ao lado. Em vez do local de produção que se esperava, os escritórios são apenas um local de distribuição.
A Tutogen desenvolveu sua relação comercial com Aleshenko há cerca de dez anos. Durante uma viagem à sede da Tutogen no interior da Bavária em novembro de 2001, Aleshenko encontrou-se com Koschatzky no Hotel Bayerischer Hof em Erlangen, próximo a Nuremberg. A ata da reunião contém uma lista de "novas patologias" trabalhando para a Tutogen nas cidades do leste da Ucrânia de Dnipropetrovsk, Poltava and Zhytomyr.
Aleshenko aparentemente trouxe consigo uma lista de pedidos para a reunião, e seus parceiros alemães estavam ansiosos em satisfazê-lo. De acordo com a ata, a "TTG (Tutogen) concordou em fornecer 5 mil marcos alemães para custos de investimento em Dnipropetrovsk (Ucrânia). O doutor Aleshenko nos enviará as instruções de pagamento necessárias."