Pelo especialista Richard Katz
Jorge Nascimento Rodrigues, na pele do Repórter M da revista portuguesa Ideias & Negócios, com Richard Katz em Janeiro de 2003
Richard Katz, tem hoje 50 anos, é um especialista sobre a Ásia e segue o Japão há mais de duas décadas. Apesar de estar na 7ª Avenida de Nova Iorque onde edita o The Oriental Economist Report, Katz viaja regularmente para o país do Sol Nascente. As más notícias é que, como o primeiro ministro Junichiro Koizumi falhou no que prometeu fazer, o cinismo e a depressão aumentaram», diz-nos Katz revendo as últimas notas de viagem.
Mas Richard mantém-se optimista. O seu livro mais recente sobre o Japão compara este gigante da Ásia-Pacífico à mitológica fénix - uma teimosa capacidade de renascer das cinzas, no caso actual de sair da crise que atacou a outrora pujante esperança de um século XXI "asiático".
A premonição de Morita
O primeiro homem a visualizar o fim do "Japão Inc." foi um ícone do milagre - Akio Morita, o rosto da Sony. O que veio a ser cognominado o "choque Morita" foi um discurso lúcido no abrir de 1992. Nos cinco anos seguintes as palavras premonitórias de Morita tornaram-se um pesadelo.
Com tão más notícias, a dúvida instala-se. Mas Katz responde: «O Japão conseguirá reformar-se e renascer. Tal como aconteceu há meio século atrás. As más notícias é que provavelmente levará mais uma década a conseguí-lo», afirma em Japanese Phoenix: The Long Road to Economic Revival, um livro editado no final de 2002 nos Estados Unidos, e já traduzido para o japonês, onde foi bem acolhido pela crítica nos jornais de referência, o Asahi Shimbun e o Nihon Keizai Shimbun.
A sua fé no renascimento do Japão é impressionante. Mas se a história serve de guia, a última vez que o país renasceu das cinzas foi com a queda do imperialismo nipónico e a protectorado americano. Que "actores" vislumbra na sociedade japonesa que puxem para a reforma?
R.K. - Se falar com japoneses com idades entre os 40 e os 50, quer no mundo dos negócios, ou na academia, ou nos media, na política ou na burocracia, verifica que o Japão está repleto de talentos, de gente inteligente e ambiciosa. Sabem que as coisas correram mal. Mas são capazes de liderar o novo Japão. O que falta é um programa económico claro, massa crítica, e um veículo institucional. Com o tempo isso aparecerá.
Mas em que ponto estamos?
R.K. - Na fase da construção do consenso e do suporte institucional que precede a acção.
«Os japoneses estão na fase da construção do consenso e do suporte institucional que precede a acção.»
Escreveu este livro para dar uma mãozinha nesse movimento?
R.K. - Quando escrevi em 1998 o meu anterior livro (The System that Soured: The Rise and Fall of the Japanese Economic Miracle), dizia que o Japão continuaria a sofrer se não avançasse para uma reforma estrutural. Desde então, muitos especialistas começaram a argumentar que o Japão não precisava de se reformar (estruturalmente) mas apenas de estímulos económicos. Na oposição, os analistas pessimistas contrapunham que o Japão jamais se reformará. Eu quis contestar as duas posições e ser mais específico sobre o que entendia por "reforma estrutural".
Mas dez anos mais para o conseguir não é uma eternidade?
É muito tempo, de facto. Mas eu não digo que deverá levar dez anos, como se fosse um conselho. O que eu digo é que vai levar. Mas mais vale tarde do que nunca. As disfunções são tão profundas que, mesmo que se fizesse tudo certo já, levaria uns cinco anos a retomar o crescimento vigoroso. Mas fazer tudo certo hoje, de uma só penada, não se observa. A oposição à reforma é profunda. Uma miríade de interesses e de milhões de empregos estão em jogo. As forças de bloqueio estão profundamente inseridas no tecido político-económico.
«Cada reforma em isolado terá um impacto meramente marginal. Pior ainda, reformas aos bocadinhos aumentarão a resistência à reforma. Só quando as reformas forem todas aplicadas de uma maneira coordenada, é que funcionarão. É, por isso, que mudanças incrementais não são suficientes.»
Foi Michael Porter em «Poderá o Japão competir?», escrito em 2002, que concluiu precisamente que as mudanças teriam de ser feitas em simultâneo e que o problema era saber se o Japão teria vontade de o fazer. Porter respondia a si próprio que o que faltava era direcção e visão. Acha que sim?
R.K. - Acho. De facto, um dos principais obstáculos é o facto de que não se consegue "concertar" uma coisa sem tratar das outras partes do sistema. Obviamente que resolver o problema do crédito mal-parado dos bancos exige actuar sobre as entidades devedoras. Mas isso implicará despedimentos de milhões num país sem fluidez no mercado de trabalho. Ora, como se pode resolver o problema das dívidas sem reformar o mercado de trabalho?
E a nível empresarial, que obstáculos encontramos às reformas?
R.K. - A reforma das empresas terá de ser equilibrada com maior actuação anti-trust e mais poder aos accionistas. De outra forma, apenas favorecemos oligopólios ainda mais fortes. Contudo, enquanto não for feita uma limpeza das empresas moribundas, essa desregulamentação apenas conduz a mais capacidade excedentária.
Mas, no meio de todas essas contradições e dramáticas opções, por onde começamos?
R.K. - Há uma coisa em que estamos de acordo - cada reforma em isolado, na verdade, terá um impacto meramente marginal. Pior ainda, reformas aos bocadinhos aumentarão a resistência à reforma. Só quando as reformas forem todas aplicadas de uma maneira coordenada, é que funcionarão. É, por isso, que mudanças incrementais não são suficientes. De qualquer maneira, há a questão das prioridades: o primeiro-ministro Koizumi, por exemplo, acha que o emagrecimento do défice orçamental do Estado deverá vir em primeiro lugar. Mas muita outra gente, em que me incluo, é de opinião que a resolução do crédito mal-parado deverá ser a primeira coisa a fazer e isto exige gastar dinheiro e baixar os impostos sobre as pessoas.
«Há dois Japões - o país é um híbrido disfuncional entre indústrias fortes de exportação, de um lado, e sectores virados para o mercado doméstico extremamente fracos.»
Quais são as principais disfunções económicas que têm gerado uma crise tão prolongada?
R.K. - O Japão tem dois problemas de fundo que dificultam o crescimento - um do lado da oferta e outro do lado da procura, por mais paradoxal que pareça esta bicefalia. Do lado da oferta, a questão é o fraco crescimento da produtividade gerado por uma economia "dual".
Dual?
R.K. - Sim, há dois Japões - o país é um híbrido disfuncional entre indústrias fortes de exportação, de um lado, e sectores virados para o mercado doméstico extremamente fracos. Com a pressão da concorrência internacional, houve sectores exportadores - como o automóvel e o fabrico de bens de equipamento - que aprenderam a fornecer a melhor tecnologia e obtiveram das mais altas produtividades do mundo. Mas, em contraste, dentro do próprio Japão, a fotografia é diferente.
Por exemplo?
R.K. - No sector alimentar, a produtividade é 1/3 da norte-americana e está caindo ainda mais. No entanto, trabalha mais gente neste sector do que no automóvel e siderurgia juntos. Como resultado desta situação, mesmo se o Japão utilizasse a plena capacidade, não conseguiria crescer anualmente mais de 1,25 a 1,5%, em termos sustentados - longe dos 4% entre 1975 e 1990.
Essa imagem dos "dois japões" é atractiva. Em suma, a "velha" economia nipónica está a comer 30 anos de performance do sector exportador?
R.K. - Essa economia "dual" só se aguentou enquanto o sector exportador conseguiu ganhar o suficiente para poder "alimentar" os sectores domésticos. Os altos preços que a Toyota pagava pelo vidro, borracha e aço fornecidos domesticamente eram como que um subsídio aos fornecedores nacionais. Esses preços domésticos inflaccionados funcionaram como um mecanismo de "transferência" de uns sectores para outros e, também, como financiamento do desemprego disfarçado. A partir do final dos anos 80, os exportadores começaram a sentir que era impossível manter esse fardo - e foram para fora, os sectores mais eficientes começaram a deslocalizar. E à medida que o país foi perdendo esses sectores mais eficientes, a produtividade global da economia começou a baixar ao nível dos sectores estagnados.
Referiu, também um problema do lado da procura. O que acontece com o consumidor japonês?
R.K. - É uma questão muito pouco compreendida - porque é que é difícil que o Japão funcione a toda a capacidade? Porque o mesmo tipo de cartelização do sector privado que sapa a produtividade global, também gera preços ao consumidor altissímos que abalam o rendimento real das famílias e que afectam a procura final. No Japão não funcionou um mecanismo que observamos nas economias maduras. Quando um país atinge a maturidade - como aconteceu com o Japão nos anos 70 -, as necessidades de investimento abrandam, e, nessa ocasião, os rendimentos familiares e o consumo crescente ocupam esse lugar, o que permite equilibrar a oferta e a procura. Mas isso não aconteceu no Japão.
«O consumo é baixo não porque as famílias japonesas poupem de mais - como muita gente pensa - mas porque ganham pouco face à carestia da vida local. A consequência é uma espécie de anorexia económica - ou seja, a incapacidade do Japão em consumir tudo o que produz.»
Porquê?
R.K. - Os altos preços ao consumidor fizeram com que o rendimento das famílias seja agora uma parcela ainda mais pequena do que nos anos 80. Em consequência, o consumo como percentagem do PIB é também mais baixo do que noutras economias avançadas.
Está a dizer-me que, apesar do PIB per capita ser alto, as famílias japonesas não têm poder de compra no mercado doméstico?
R.K. - O consumo é baixo não porque as famílias japonesas poupem de mais - como muita gente pensa - mas porque ganham pouco face à carestia da vida local. A consequência é uma espécie de anorexia económica - ou seja, a incapacidade do Japão em consumir tudo o que produz. Os japoneses gastam 23% em comida, enquanto que os americanos despendem apenas 10%.
O que exige reformas nessa vertente?
R.K. - As reformas que introduzirem mais concorrência doméstica não só melhorarão a eficiência pelo lado da oferta, como diminuirão os preços monopolistas e aumentarão o poder de compra real da população.
Mas, então, como é que o Japão conseguiu crescer 4% ao ano e o PIB per capita 3% entre 1975 e 1990?
R.K. - Conseguiu-o artificialmente - é essa a resposta. Através de um estímulo artificial da procura, baseado em excedentes comerciais elevados, défices orçamentais gigantes e, durante os anos 80, com a ajuda adicional de juros baratos que actuaram como esteróides monetários. Hoje a imagem do Japão é a de um doente que abusou de antibióticos a um ponto que os medicamentos já não fazem nada.
E falando em termos políticos, o sistema está a mudar?
R.K. - O sistema politico-económico do Japão funcionou com um nível mínimo de crescimento real e nominal. Se isso desaparece, conflitos de interesse rebentam - o alívio concedido a um sector de interesses inevitavelmente prejudica outro. Cada dia que passa assistimos, por isso, a conflitos intestinos nos eleitores do Partido Democrático Liberal: camponeses contra urbanos, bancos contra seguros, jovens contra reformados, sector eficiente contra ineficiente. O Japão continua a ser a única democracia que está baseada num partido único de Estado. Esta é uma das razões porque tem sido tão difícil equacionar os problemas.
Mas o PDL já foi afectado por isso seriamente...
R.K. - Já se partiu uma vez, em 1993, o que provocou a queda temporária do poder. Mesmo tendo voltado ao poder, tem sido obrigado a mudar de parceiros de coligação. Mais tarde ou mais cedo nova cisão voltará de novo a acontecer, talvez como consequência da ascensão de Koisumi. Hoje em dia há um fosso visível entre os interesses do partido dominante e da nação. Numa democracia, este tipo de fosso não é sustentável indefinidamente.
Como apontamento pessoal, uma das coisas que mais me impressionou foi ter ouvido em Tóquio as reacções a um discurso de Akio Morita em princípios de 1992, em que ele dizia aos japoneses que o sistema do pós-guerra estava esgotado. Isso provocou o que os analistas chamaram de "choque Morita". Enfim, a elite empresarial sabe perfeitamente o que está errado desde há uma década pelo menos. Porque não muda?
R.K. - Porque nenhuma sociedade se lança numa transformação antes que todas as outras alternativas se tenham esgotado. E, durante tantos anos, muitos dos mais brilhantes economistas têm clamado que há várias alternativas ainda possíveis: basta gastar mais ou imprimir mais papel moeda. Só muito recentemente a noção de que "não há renascimento sem reforma" começou a ter aceitação geral.
Para fechar, o seu prognóstico?
R.K. - O Japão fará a reforma e renascerá.
Jorge Nascimento Rodrigues, na pele do Repórter M da revista portuguesa Ideias & Negócios, com Richard Katz em Janeiro de 2003
Richard Katz, tem hoje 50 anos, é um especialista sobre a Ásia e segue o Japão há mais de duas décadas. Apesar de estar na 7ª Avenida de Nova Iorque onde edita o The Oriental Economist Report, Katz viaja regularmente para o país do Sol Nascente. As más notícias é que, como o primeiro ministro Junichiro Koizumi falhou no que prometeu fazer, o cinismo e a depressão aumentaram», diz-nos Katz revendo as últimas notas de viagem.
Mas Richard mantém-se optimista. O seu livro mais recente sobre o Japão compara este gigante da Ásia-Pacífico à mitológica fénix - uma teimosa capacidade de renascer das cinzas, no caso actual de sair da crise que atacou a outrora pujante esperança de um século XXI "asiático".
A premonição de Morita
O primeiro homem a visualizar o fim do "Japão Inc." foi um ícone do milagre - Akio Morita, o rosto da Sony. O que veio a ser cognominado o "choque Morita" foi um discurso lúcido no abrir de 1992. Nos cinco anos seguintes as palavras premonitórias de Morita tornaram-se um pesadelo.
Com tão más notícias, a dúvida instala-se. Mas Katz responde: «O Japão conseguirá reformar-se e renascer. Tal como aconteceu há meio século atrás. As más notícias é que provavelmente levará mais uma década a conseguí-lo», afirma em Japanese Phoenix: The Long Road to Economic Revival, um livro editado no final de 2002 nos Estados Unidos, e já traduzido para o japonês, onde foi bem acolhido pela crítica nos jornais de referência, o Asahi Shimbun e o Nihon Keizai Shimbun.
A sua fé no renascimento do Japão é impressionante. Mas se a história serve de guia, a última vez que o país renasceu das cinzas foi com a queda do imperialismo nipónico e a protectorado americano. Que "actores" vislumbra na sociedade japonesa que puxem para a reforma?
R.K. - Se falar com japoneses com idades entre os 40 e os 50, quer no mundo dos negócios, ou na academia, ou nos media, na política ou na burocracia, verifica que o Japão está repleto de talentos, de gente inteligente e ambiciosa. Sabem que as coisas correram mal. Mas são capazes de liderar o novo Japão. O que falta é um programa económico claro, massa crítica, e um veículo institucional. Com o tempo isso aparecerá.
Mas em que ponto estamos?
R.K. - Na fase da construção do consenso e do suporte institucional que precede a acção.
«Os japoneses estão na fase da construção do consenso e do suporte institucional que precede a acção.»
Escreveu este livro para dar uma mãozinha nesse movimento?
R.K. - Quando escrevi em 1998 o meu anterior livro (The System that Soured: The Rise and Fall of the Japanese Economic Miracle), dizia que o Japão continuaria a sofrer se não avançasse para uma reforma estrutural. Desde então, muitos especialistas começaram a argumentar que o Japão não precisava de se reformar (estruturalmente) mas apenas de estímulos económicos. Na oposição, os analistas pessimistas contrapunham que o Japão jamais se reformará. Eu quis contestar as duas posições e ser mais específico sobre o que entendia por "reforma estrutural".
Mas dez anos mais para o conseguir não é uma eternidade?
É muito tempo, de facto. Mas eu não digo que deverá levar dez anos, como se fosse um conselho. O que eu digo é que vai levar. Mas mais vale tarde do que nunca. As disfunções são tão profundas que, mesmo que se fizesse tudo certo já, levaria uns cinco anos a retomar o crescimento vigoroso. Mas fazer tudo certo hoje, de uma só penada, não se observa. A oposição à reforma é profunda. Uma miríade de interesses e de milhões de empregos estão em jogo. As forças de bloqueio estão profundamente inseridas no tecido político-económico.
«Cada reforma em isolado terá um impacto meramente marginal. Pior ainda, reformas aos bocadinhos aumentarão a resistência à reforma. Só quando as reformas forem todas aplicadas de uma maneira coordenada, é que funcionarão. É, por isso, que mudanças incrementais não são suficientes.»
Foi Michael Porter em «Poderá o Japão competir?», escrito em 2002, que concluiu precisamente que as mudanças teriam de ser feitas em simultâneo e que o problema era saber se o Japão teria vontade de o fazer. Porter respondia a si próprio que o que faltava era direcção e visão. Acha que sim?
R.K. - Acho. De facto, um dos principais obstáculos é o facto de que não se consegue "concertar" uma coisa sem tratar das outras partes do sistema. Obviamente que resolver o problema do crédito mal-parado dos bancos exige actuar sobre as entidades devedoras. Mas isso implicará despedimentos de milhões num país sem fluidez no mercado de trabalho. Ora, como se pode resolver o problema das dívidas sem reformar o mercado de trabalho?
E a nível empresarial, que obstáculos encontramos às reformas?
R.K. - A reforma das empresas terá de ser equilibrada com maior actuação anti-trust e mais poder aos accionistas. De outra forma, apenas favorecemos oligopólios ainda mais fortes. Contudo, enquanto não for feita uma limpeza das empresas moribundas, essa desregulamentação apenas conduz a mais capacidade excedentária.
Mas, no meio de todas essas contradições e dramáticas opções, por onde começamos?
R.K. - Há uma coisa em que estamos de acordo - cada reforma em isolado, na verdade, terá um impacto meramente marginal. Pior ainda, reformas aos bocadinhos aumentarão a resistência à reforma. Só quando as reformas forem todas aplicadas de uma maneira coordenada, é que funcionarão. É, por isso, que mudanças incrementais não são suficientes. De qualquer maneira, há a questão das prioridades: o primeiro-ministro Koizumi, por exemplo, acha que o emagrecimento do défice orçamental do Estado deverá vir em primeiro lugar. Mas muita outra gente, em que me incluo, é de opinião que a resolução do crédito mal-parado deverá ser a primeira coisa a fazer e isto exige gastar dinheiro e baixar os impostos sobre as pessoas.
«Há dois Japões - o país é um híbrido disfuncional entre indústrias fortes de exportação, de um lado, e sectores virados para o mercado doméstico extremamente fracos.»
Quais são as principais disfunções económicas que têm gerado uma crise tão prolongada?
R.K. - O Japão tem dois problemas de fundo que dificultam o crescimento - um do lado da oferta e outro do lado da procura, por mais paradoxal que pareça esta bicefalia. Do lado da oferta, a questão é o fraco crescimento da produtividade gerado por uma economia "dual".
Dual?
R.K. - Sim, há dois Japões - o país é um híbrido disfuncional entre indústrias fortes de exportação, de um lado, e sectores virados para o mercado doméstico extremamente fracos. Com a pressão da concorrência internacional, houve sectores exportadores - como o automóvel e o fabrico de bens de equipamento - que aprenderam a fornecer a melhor tecnologia e obtiveram das mais altas produtividades do mundo. Mas, em contraste, dentro do próprio Japão, a fotografia é diferente.
Por exemplo?
R.K. - No sector alimentar, a produtividade é 1/3 da norte-americana e está caindo ainda mais. No entanto, trabalha mais gente neste sector do que no automóvel e siderurgia juntos. Como resultado desta situação, mesmo se o Japão utilizasse a plena capacidade, não conseguiria crescer anualmente mais de 1,25 a 1,5%, em termos sustentados - longe dos 4% entre 1975 e 1990.
Essa imagem dos "dois japões" é atractiva. Em suma, a "velha" economia nipónica está a comer 30 anos de performance do sector exportador?
R.K. - Essa economia "dual" só se aguentou enquanto o sector exportador conseguiu ganhar o suficiente para poder "alimentar" os sectores domésticos. Os altos preços que a Toyota pagava pelo vidro, borracha e aço fornecidos domesticamente eram como que um subsídio aos fornecedores nacionais. Esses preços domésticos inflaccionados funcionaram como um mecanismo de "transferência" de uns sectores para outros e, também, como financiamento do desemprego disfarçado. A partir do final dos anos 80, os exportadores começaram a sentir que era impossível manter esse fardo - e foram para fora, os sectores mais eficientes começaram a deslocalizar. E à medida que o país foi perdendo esses sectores mais eficientes, a produtividade global da economia começou a baixar ao nível dos sectores estagnados.
Referiu, também um problema do lado da procura. O que acontece com o consumidor japonês?
R.K. - É uma questão muito pouco compreendida - porque é que é difícil que o Japão funcione a toda a capacidade? Porque o mesmo tipo de cartelização do sector privado que sapa a produtividade global, também gera preços ao consumidor altissímos que abalam o rendimento real das famílias e que afectam a procura final. No Japão não funcionou um mecanismo que observamos nas economias maduras. Quando um país atinge a maturidade - como aconteceu com o Japão nos anos 70 -, as necessidades de investimento abrandam, e, nessa ocasião, os rendimentos familiares e o consumo crescente ocupam esse lugar, o que permite equilibrar a oferta e a procura. Mas isso não aconteceu no Japão.
«O consumo é baixo não porque as famílias japonesas poupem de mais - como muita gente pensa - mas porque ganham pouco face à carestia da vida local. A consequência é uma espécie de anorexia económica - ou seja, a incapacidade do Japão em consumir tudo o que produz.»
Porquê?
R.K. - Os altos preços ao consumidor fizeram com que o rendimento das famílias seja agora uma parcela ainda mais pequena do que nos anos 80. Em consequência, o consumo como percentagem do PIB é também mais baixo do que noutras economias avançadas.
Está a dizer-me que, apesar do PIB per capita ser alto, as famílias japonesas não têm poder de compra no mercado doméstico?
R.K. - O consumo é baixo não porque as famílias japonesas poupem de mais - como muita gente pensa - mas porque ganham pouco face à carestia da vida local. A consequência é uma espécie de anorexia económica - ou seja, a incapacidade do Japão em consumir tudo o que produz. Os japoneses gastam 23% em comida, enquanto que os americanos despendem apenas 10%.
O que exige reformas nessa vertente?
R.K. - As reformas que introduzirem mais concorrência doméstica não só melhorarão a eficiência pelo lado da oferta, como diminuirão os preços monopolistas e aumentarão o poder de compra real da população.
Mas, então, como é que o Japão conseguiu crescer 4% ao ano e o PIB per capita 3% entre 1975 e 1990?
R.K. - Conseguiu-o artificialmente - é essa a resposta. Através de um estímulo artificial da procura, baseado em excedentes comerciais elevados, défices orçamentais gigantes e, durante os anos 80, com a ajuda adicional de juros baratos que actuaram como esteróides monetários. Hoje a imagem do Japão é a de um doente que abusou de antibióticos a um ponto que os medicamentos já não fazem nada.
E falando em termos políticos, o sistema está a mudar?
R.K. - O sistema politico-económico do Japão funcionou com um nível mínimo de crescimento real e nominal. Se isso desaparece, conflitos de interesse rebentam - o alívio concedido a um sector de interesses inevitavelmente prejudica outro. Cada dia que passa assistimos, por isso, a conflitos intestinos nos eleitores do Partido Democrático Liberal: camponeses contra urbanos, bancos contra seguros, jovens contra reformados, sector eficiente contra ineficiente. O Japão continua a ser a única democracia que está baseada num partido único de Estado. Esta é uma das razões porque tem sido tão difícil equacionar os problemas.
Mas o PDL já foi afectado por isso seriamente...
R.K. - Já se partiu uma vez, em 1993, o que provocou a queda temporária do poder. Mesmo tendo voltado ao poder, tem sido obrigado a mudar de parceiros de coligação. Mais tarde ou mais cedo nova cisão voltará de novo a acontecer, talvez como consequência da ascensão de Koisumi. Hoje em dia há um fosso visível entre os interesses do partido dominante e da nação. Numa democracia, este tipo de fosso não é sustentável indefinidamente.
Como apontamento pessoal, uma das coisas que mais me impressionou foi ter ouvido em Tóquio as reacções a um discurso de Akio Morita em princípios de 1992, em que ele dizia aos japoneses que o sistema do pós-guerra estava esgotado. Isso provocou o que os analistas chamaram de "choque Morita". Enfim, a elite empresarial sabe perfeitamente o que está errado desde há uma década pelo menos. Porque não muda?
R.K. - Porque nenhuma sociedade se lança numa transformação antes que todas as outras alternativas se tenham esgotado. E, durante tantos anos, muitos dos mais brilhantes economistas têm clamado que há várias alternativas ainda possíveis: basta gastar mais ou imprimir mais papel moeda. Só muito recentemente a noção de que "não há renascimento sem reforma" começou a ter aceitação geral.
Para fechar, o seu prognóstico?
R.K. - O Japão fará a reforma e renascerá.